segunda-feira, 17 de março de 2014

GUERRA DO BRASIL É NA FRONTEIRA


O Estado de S. Paulo, 15 de março de 2014 | 19h 26

Para agências de análise estratégica, o inimigo regional é o crime organizado

Roberto Godoy 



Depois de dois dias de chuva fina e neblina, finalmente um sábado de sol, céu sem nuvens - os três aviões de ataque, Super Tucanos, decolaram quase simultaneamente da base em Boa Vista, capital de Roraima, dois deles levando duas bombas de 230 quilos. Monitorados eletronicamente desde Manaus, distante 700 quilômetros, os turboélices do Esquadrão Escorpião faziam um voo manso, ajustando as coordenadas do alvo, a 218 km: uma faixa de terra rasgada no meio da selva; 300 metros de extensão por 15 de largura que recebia, para pouso e decolagem, aviões de traficantes de armas e drogas. Os A-29 da FAB entraram na aproximação final a 1.200 metros e, no momento do lançamento, faziam um mergulho a 600 metros. As bombas atingiram a pista a 550 km por hora, abrindo crateras de 10 metros de diâmetro por 3,5 m de profundidade.

O terceiro Super Tucano do grupo registrou toda a operação - mas tinha outra missão, mais delicada, de escolta armada, com metralhadoras .50, durante o tempo de bombardeio. Havia a possibilidade de que os quadrilheiros, cada vez mais ousados, disparassem contra os aviões militares.

O plano de ação de guerra e o cuidado com a segurança são justificados. A inteligência das Forças Armadas localizou em junho de 2013 ao menos 60 pistas irregulares, sete delas próximo das linhas de fronteira com a Colômbia e o Peru. As gangues mantêm o tipo de facilidades na Bolívia. O procedimento segue um padrão: pasta de coca e outros produtos, os eletrônicos principalmente, são trocados por armas ou apenas vendidos nesses pontos. Parada rápida e nova decolagem na direção de conexões em países de vigilância frágil, como o Suriname, ao norte.

A principal ameaça à segurança e defesa dos países da América Latina e Caribe é o crime organizado de grande envergadura que envolve tráfico de drogas, contrabando de armas e de componentes eletrônicos, sequestro e a ação de piratas e dos traficantes de pessoas. Segundo o Instituto de Estudos Estratégicos de Londres, o Brasil reage a essa situação. Mantém as Forças Armadas mobilizadas e atua nas fronteiras com emprego de tropas e equipamentos em condição de combate. Está preparando duas grandes blindagens tecnológicas: o Sisfron, que deve fechar as fronteiras, e o SisGAAZ, a rede que cobrirá o Atlântico na proporção de 4,5 milhões de km², equivalente ao território do oeste da Europa. Ambos os sistemas serão feitos em etapas ao longo de dez anos e vão exigir, conjuntamente, algo como R$ 20 bilhões.

Só nas sete Operações Ágata, realizadas de agosto de 2011 a junho de 2013, os efetivos empregados chegaram a 76 mil, inclusos aí os agentes civis. O resultado: cerca 12 toneladas de drogas apreendidas, duas pistas de pouso destruídas, armas e munições recolhidas em larga escala.

O inimigo, todavia, ganha poder. O Estado teve acesso a um documento do Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos que destaca: as corporações criminosas como os Zetas, os Cavaleiros Templários II e o Cartel de Jalisco Nova Geração - todos de origem no México, mas com ramificações comprovadas na América Central - estão adquirindo capacidades paramilitares.

Recebem bom treinamento de mercenários. Já seriam capazes de se organizar em pelotões de 20 a 60 homens, ou em companhias de até 250 ‘corazón hermanos’, chefiados pelo equivalente a um capitão. Combinados com o grupo Mara Salvatrucha, de El Salvador, e o Comando Rojo, da Guatemala, responsáveis por, talvez, mais 900 outras gangues associadas, teriam um quadro estimado entre 70 mil e 200 mil militantes. "Eles avançam inexoravelmente rumo à América do Sul, olhando os grandes mercados, trabalhando como empresários, mas devastando tudo como gafanhotos", analisa o pesquisador Martin Rames, da Universidade Autônoma do México.

O professor Gunther Rudzit, especialista em segurança internacional e coordenador das Faculdades Rio Branco, concorda: "A visão é em parte correta, pois o poder desagregador e corruptivo do narcotráfico, por exemplo, é muito grande - há necessidade de combatê-lo como principal ameaça à segurança nacional". Gunther destaca o fato de "não haver duas coalizões, uma de governos contra o crime, e outra, das organizações marginais, se enfrentando".

É apenas questão de tempo, acredita o mexicano Rames: "O pior cenário contempla a ascensão intencional de um governo proscrito, em um Estado nacional vulnerável, facilitando atos ilícitos".

Piratas. O governo brasileiro considera pirataria os atos cometidos em alto mar ou fora da jurisdição de um país. Os assaltos e saques havidos na Amazônia e no litoral são tratados como crimes comuns.

Todavia, os "ratos d’água" preocupam o Comando da Marinha, que reconhece ocorrências em localidades como Comunidade do Perpétuo Socorro, em Manaus, Jesus Ressuscitado, no Careiro da Várzea, em São José do Amatari e Nossa Senhora da Conceição, em Itacoatiara; nos municípios de Santo Antonio do Içá e Coari, no Amazonas, além da região dos Estreitos e Gurupá, no Pará.

Navios, aviões, helicópteros, tropas especializadas e ações conjuntas de fiscalização participam de iniciativas de controle de área. A mais recente, em fevereiro, mobilizou 30 mil militares durante seis dias - fiscalizou 8.159 embarcações e apreendeu 239.

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Brasil em guerra: inimigo é o crime organizado nas fronteiras

TV Estadão | 15.03.2014

O conflito da América Latina e Caribe é nas fronteiras dos países, contra traficantes, seqüestradores, contrabandistas e, na Amazônia, contra piratas. No Brasil, as Forças Armadas patrulham rios e vigiam os limites em terra; a FAB bombardeia pistas clandestinas

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quarta-feira, 12 de março de 2014

FRATERNIDADE E TRÁFICO HUMANO


JORNAL DO COMÉRCIO. Coluna publicada em 06/03/2014


DOM JAIME SPENGLER

A voz do Pastor



Estamos iniciando mais um tempo quaresmal. Durante este tempo, queremos refletir mais intensamente sobre a tragédia do tráfico humano.

Já se vão muitos anos desde quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vem propondo à comunidade eclesial a celebração da Campanha da Fraternidade, durante este período da Quaresma, qual itinerário de libertação pessoal, comunitária e social. Os tradicionais exercícios quaresmais – jejum, oração e esmola – querem nos conduzir ao encontro d’Aquele que é a plenitude da vida; ao encontro com Aquele que é a luz, o caminho, a verdade e a vida de toda pessoa que vem a este mundo. O jejum é antes de tudo renúncia, esvaziamento, expropriação, tentativa de deixar-se atingir pela graça da liberdade que Cristo nos trouxe. A oração é empenho de exposição de quem espera ser atingido pela bondade e misericórdia d’Aquele que nos amou desde sempre. A esmola é expressão de solidariedade; decisão de sair de si mesmo, para deixar-se tocar pela presença do outro, particularmente o mais necessitado, o mais pobre.

Firmes nos exercícios quaresmais que a tradição nos legou, somos convidados a dar atenção especial a uma das chagas de nosso tempo: o tráfico humano. Não se trata de um fenômeno social novo. Ele é tão antigo quanto a própria história da humanidade. O que talvez seja novo são as conotações. Tal drama humano produz tanto sofrimento! Não podemos permanecer indiferentes diante desta tragédia.

A Campanha da Fraternidade deste ano tem como objetivo geral identificar as práticas de tráfico humano em suas várias formas e denunciá-lo como violação da dignidade e da liberdade humana, mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar esse mal, com vista ao resgate da vida dos filhos e das filhas de Deus. E tem como objetivos específicos identificar as causas e modalidades do tráfico humano e os rostos que sofrem com essa exploração; denunciar as estruturas e situações causadoras do tráfico humano; reivindicar, dos poderes públicos, políticas e meios para a reinserção das pessoas atingidas pelo tráfico humano na vida familiar e social; promover ações de prevenção e de resgate da cidadania das pessoas em situação de tráfico; suscitar, à luz da palavra de Deus, a conversão que conduza ao empenho transformador dessa realidade aviltante da pessoa humana; celebrar o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, sensibilizando para a solidariedade e o cuidado às vítimas desse mal.

No Evangelho de Marcos, Jesus afirma que existe uma espécie de espírito que só pode ser expulso por meio da oração (cf. Mc 9, 29). Poderíamos, talvez, parafrasear a expressão de Jesus e dizer que o espírito que sustenta a ferida humana e social do tráfico humano só pode ser sanada através da oração, do jejum e da caridade. Caridade aqui entendida como empenho pessoal e social na busca de indicações objetivas para que tamanho mal seja erradicado do seio da sociedade humana.

O tráfico humano é expressão contundente do cerceamento da liberdade humana, e de desprezo descarado à dignidade dos filhos e das filhas de Deus. Tudo aquilo que impede ou cerceia a liberdade desfigura o homem e a mulher, criados à “imagem e semelhança de Deus”. Podemos certamente dizer que o tráfico humano é uma das modalidades atuais de escravidão. É verdade que já se passaram quase 126 anos da proclamação da libertação dos escravos. Mas é também verdade que se podem constatar várias situações Brasil afora, onde o trabalho escravo continua sendo uma prática comum. E o tráfico humano é uma forma violenta, indigna, cruel e maldita de escravidão.

Neste contexto, talvez seja oportuno recordar o que Papa Francisco disse em Lampedusa, no Sul da Itália, no dia 8 de julho de 2013 : “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”

Oxalá, possa este tempo quaresmal nos ajudar a não cair na indiferença e a colaborar para que este drama humano possa ser erradicado de nosso meio.