segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

CAÇADORES DE CARROS NA BOLÍVIA VÃO ATRÁS DE CARROS ROUBADOS NO BRASIL



Você vai acompanhar uma investigação junto com os caçadores de carros roubados. Eles usam a tecnologia para recuperar veículos levados do Brasil e vendidos em países vizinhos. FANTÁSTICO, REDE GLOBO, 11/12/2011


O trânsito é caótico em Santa Cruz de la Sierra, maior cidade da Bolívia. Às vezes, simplesmente trava.

Homens são caçadores têm uma missão nesta selva urbana. Eles preparam as armas - antenas, receptores, GPS, câmeras fotográficas, e partem para uma caçada diferente das que estão acostumados: desta vez, em terras estrangeiras.

O aparelho começa a apitar. Tensão no carro. Para os caçadores, esse apito é sinal de que acharam, dentro de um condomínio boliviano, um carro roubado no Brasil. O técnico de rastreamento faz um contato com a empresa em São Paulo para saber que tipo de carro é e quando ele foi roubado. Ele é informado de que se trata de um Mitsubishi L-200, 2007, roubado em Brasília. “Vamos ver a verificação, pra ver se bate com estas informações”.

A verificação é feita por cima do muro. A primeira etapa para recuperar o veículo roubado está cumprida. Os caçadores não têm tempo a perder. Logo, outro apito. Parece vir de um Vectra preto, que passa e desaparece.

Em média, 360 mil carros são roubados a cada ano no Brasil - cerca da metade no estado de São Paulo, onde só neste ano já ocorreram quase 170 mil furtos e roubos de veículos. Dois a cada cinco minutos.

No QG dos caçadores, em São Paulo, uma tela mostra em tempo real onde estão os carros roubados. Os veículos são equipados com sistema de radiofrequência. Assim que o roubo acontece, os clientes avisam à central.

“Automaticamente, eles disparam o sinal daqui. As antenas começam a reportar esse sinal, o carro roubado passa próximo a uma dessas antenas, a nossa central capta isso. E dão o ‘start’ na equipe de localização que está nas ruas”, explica Marcelo Orsi, diretor de marketing da empresa.

Menos da metade dos veículos roubados no país é recuperada. “A gente sabe que uma boa parte é desmanchada no Brasil. Outra parte continua circulando no Brasil com seus documentos, placas e chassis adulterados. E outra parte é levada. Eu diria principalmente para Paraguai e Bolívia”, diz Julio Avelar, superintendente da Central de Seguradoras (CNseg).

É por isso que os caçadores de carros roubados estão em Santa Cruz de la Sierra, que fica a 650 quilômetros de Corumbá, cidade em Mato Grosso do Sul que fica na fronteira com a Bolívia. Lá, eles rodam ao léu à espera de que o aparelho apite.

Mais um veículo roubado no Brasil foi localizado e levado para cá para Santa Cruz de la Sierra, e está circulando normalmente. É uma perua, que está parada à frente.

Em cinco dias de caça, localizamos sete automóveis roubados no Brasil. Identificamos alguns dos bolivianos que compraram esses carros.

“A gente uma informação de que esse carro foi roubado no Brasil”, diz o repórter ao motorista do carro.

Em São Paulo, falamos a dona do carro. Ela conta como foi o assalto que sofreu. “Abri a garagem, no momento que eu desliguei o motor, apareceram dois rapazes jovens e entraram no carro um de cada lado, com uma arma na minha cabeça, e pediram para que eu saísse do carro, mostrando primeiro onde estavam a bolsa e as coisas de valor. E depois me liberaram”.

Na Bolívia, o homem diz que o carro foi comprado de “uma pessoa séria”.

“Os veículos que são roubados são levados para o território boliviano onde são trocados por cocaína. Um carro popular vale normalmente um quilo de cocaína, ao passo que caminhonetes são trocadas por quatro ou cinco quilos da droga. Caminhões, dependendo do modelo e ano, por 15 a 20 quilos de cocaína”, detalha o delegado da Polícia Federal Eder Rosa Magalhães.

Os caçadores recuperam a pista do Vectra preto. Eles já o viram estacionado em vários pontos de Santa Cruz. Flagraram o motorista bebendo cerveja em um posto de gasolina, mas nada do endereço de onde o carro fica. Só assim eles podem acionar a polícia.

No Brasil, foi fácil encontrar o ex-dono. “Eu vim prestar socorro a um amigo que bateu o carro. Depois de resolvido o problema dele, ele pegou o carro dele e saiu. Quando eu fui entrar no meu carro para sair também, dois elementos armados me abordaram, me renderam e me fizeram entrar no carro. Mandou eu abaixar a cabeça, deitar no banco, e assim eu fiz”, conta Valdeir de Queiroz Lima, advogado.

Ficou uma hora com os bandidos e foi deixado em um matagal com os pés e as mãos amarrados. “Praticamente meia hora depois do ocorrido, a polícia foi acionada. E esse carro chegou na fronteira, passou na Bolívia e a polícia não encontrou esse carro”, conta o dono do carro.

“É fácil e é fácil desviar da fiscalização. A quantidade de vias de acessos secundárias que são possíveis de serem utilizadas dificultam demais o trabalho da fiscalização”, esclarece Luciano Anechini Lara Leite, promotor de Corumbá.

Para escapar da fiscalização, as quadrilhas usam estradas secundárias, como uma em Corumbá. Elas são chamadas cabriteiras, que vem de cabrito. Na gíria do crime, significa carro roubado.

A polícia sabe da existência de entre 50 e 70 cabriteiras perto de Corumbá. Seguimos por uma delas, que termina a poucos metros de quem deveria fiscalizar os automóveis que saem do país.

A fiscalização fica por conta de uma série de câmeras espalhadas pelas principais rodovias que levam às fronteiras do Brasil. Elas são bancadas pelas seguradoras e fotografam todo carro que passa. Se a placa coincidir com a lista nacional de veículos roubados, a informação é passada para a polícia.

Mas, perto de Corumbá, o posto da Polícia Rodoviária Federal está desativado, por falta de pessoal. Se um carro roubado é flagrado, simplesmente não tem policial para correr atrás.

Finalmente, os caçadores conseguem fotografar o Vectra dentro da garagem. Abatido mais um alvo, eles voltam a rodar e captam outro sinal: um Astra preto, roubado em Corumbá. Mais alguns quilômetros, outro apito forte. O sinal é de uma Toyota Hilux, roubada em Cáceres, Mato Grosso. Mas os caçadores só conseguem o endereço à noite. Selos no vidro levantam a suspeita de que o carro foi legalizado no país vizinho.

A frota boliviana é de pouco mais de um milhão de carros. Em junho de 2011, o governo boliviano editou uma lei para permitir a regularização de veículos sem documentos, chamados de chutos por lá. Recebeu pouco mais de 120 mil inscrições. Ou seja, mais de 10% da frota estaria ilegal.

O Brasil enviou uma lista com dados de 2,4 milhões de carros roubados nos últimos dez anos e não recuperados.

O cruzamento dos dados revelou a existência de quatro mil veículos com queixa de roubo no Brasil rodando na Bolívia. Até agora, 487 foram apreendidos, mas nenhum ainda voltou para o Brasil.

“Mas nunca imaginei que o meu carro estivesse rodando livremente com uma placa oficial. Realmente é assustador”, afirma a dona do carro roubada.

Os caçadores continuam em busca de veículos roubados. Eles chegam perto de uma oficina mecânica. Eles levantam a hipótese de o carro estar sendo consertado. Logo depois, fica confirmado que o Audi está dentro da oficina.

Outra presa é captada pelos radares dos caçadores. Estaria dentro de um galpão. Segundo a central, é um verdadeiro troféu de caça: um caminhão Scania branco, avaliado em R$ 250 mil.

O rapaz que atende a reportagem diz que não sabe de nada e que o veículo pertence ao tio. “Usamos para levar carga para La Paz, para Cochbamba”, diz.

“Com certeza, é o caminhão nosso”, garante o dono do Scarnia. “Só mudaram a placa do caminhão.”

Quando viu que o caminhão não voltou no final do dia, o dono da transportadora já imaginou que fosse um roubo. Mais um.

“No outro dia os motoristas entraram em contato. Disseram que tinham sido assaltados e seqüestrados. Que é sempre do mesmo modo. Quando eles liberam o motorista, o caminhão já sumiu”, conta João Henrique Gallo Costa, ex-dono do caminhão.

Na Bolívia, o rapaz nega que tenha havido qualquer problema de documentação.

“A gente achava que esse caminhão era desmontado e revendido em peças. Agora, saber que o caminhão está emplacado e trabalhando para outra pessoa, um bem que era nosso, a gente fica indignado com isso”, diz o dono do Scania.

Com as informações em mãos de sete carros roubados no Brasil e flagrados rodando em Santa Cruz de la Sierra, chega a hora dos caçadores buscarem a polícia especializada em roubo de veículos. Acompanhamos sem nos identificar como jornalistas.

O comandante vai mandar investigadores atrás dos carros. Mas, antes, ele dá uma informação importante. Diz que as placas não são legais e cita o exemplo da placa do Astra preto.

“Deveria estar com um Montero Pajero. São clonadas. Colocaram uma placa de um Montero no Astra”, diz.

Na rua, os policiais apreendem quatro dos sete carros que localizamos. O caminhão Scania e o Audi-3 sumiram depois que foram flagrados por nossa reportagem. A Pajero, segundo a polícia, não foi apreendida porque teria sido legalizada em 2002 por uma lei parecida com a de junho. As duas peruas, a Mitsubishi L-200 e a Hilux, estavam com o chassi adulterado e foram apreendidas.

O Astra tinha placa clonada. Para ser levado para o pátio da polícia teve que ser empurrado e depois ganhou um reforço da bateria do carro dos policiais. O Vectra, que tanto trabalho deu aos caçadores, acabou sendo pego em frente à delegacia, onde o dono boliviano tinha ido sossegadamente tratar de algum outro problema.

Os quatro apreendidos foram parar em um pátio. Juntaram-se aos outros 500 que a nova lei boliviana identificou como fruto de roubo em território brasileiro. Vão aguardar até que o governo boliviano decida se, e como, vai mandá-los de volta ao Brasil. Nenhum dono foi preso.

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